MEMÓRIA – INFÂNCIA
Oswaldo Romano
Trago na memória uma cena da infância. A pedido da Oficina de Textos, conto como se retrocedesse no tempo.
Aquela época era muito boa. É uma agonia a saudade dela. Queria voltar, coisa impossível. Mas fecho os olhos, vejo no escuro estrelinhas, procuro e uma janela se abre, entra a luz. Vejo neblina, quero desvendar e o que aparece? Está muito embaçado. Uma menina? Um menino? É um menino! Sou eu... Sim sou eu! A roupa, calça curta, o cabelo loiro, a franja, descalço!
Nessa idade não via o futuro. Impossível! Estamos no ano de 1942 nesta cidade de Mineiros do Tietê. Só falta um ano para eu ir embora. Vou para São Paulo. Meus pais, filhos de italianos, mal se tocam que o Brasil está em guerra. Pensam que a Itália vai ganhar. Não corro perigo porque ainda tenho só treze anos. Bem... Ainda dá tempo para pensar. Às vezes tremo, depois, claro, me acalmo.
Vou cuidar da vida. Já sou responsável. Todo dia levo as cabras para pastar, coisa repetitiva. Vou onde a cidade se acaba. Lá encontro com meu amigo Aparício, ele com as dele. Também pastoreia.
Chegou antes de mim. Já vi, está lá.
— Aparício. Oi Aparício. Segure seu bode. Ele quer mexer com minha Cabana. Esta cabra é muito amorosa.
— Oi Wado Chega ai. O que vamos fazer hoje?
— Esta muito calor! Os bodes e cabritos vamos amarrar por aqui. Longe um do outro para não cruzar as cordas. As cabras, vamos soltar naquele terreno vazio, como já fizemos antes.
— Ontem choveu, vamos nadar? Será que o rio não está muito sujo? Quer arriscar? Vamos p’ra lá?
— Vamo embora baixinho, elas vão ficar bem aqui. Tem muito capim. Se ôce quisé ficá, p’ra nóis só tem mangas no pomar do Angelim.
— Não, não doido. Hoje ele está lá. Vamo nadá no rio de baixo.
— Boa ideia, vamo!
Depois de três, quatro horas, a noite estava chegando.
— Wado, vamo embora seu, é tarde. Correndo tá?
— Tá.
— Upá, veja, estão lá. Parício, lembra o ano passado. Olhe, perto do Natal não podemo fazê isso, não. Lembra? Levaram um cabrito nosso.
— Parício reúna as de fora, vou ver as cabras do terreno. — Aparício, Aparício, segure ai as cabras, está faltando a Cabana. Hoje ela veio sem canga. Iiiii rapais, acho que fugiu! Espera, tem um buraco na cerca da véia.
— Espera, eu vou lá.
— Não, não, a Cabana é minha e você, tiziu como é, vai apanhar. Ali mora a Piva, a do falecido coveiro.
- Levo o estilingue?
— É bão, de repente...
Cheguei dizendo: —Sabe dona, minha cabra entrou aqui na sua quinta. A cerca está ruim, tem buraco...
— Sim, sim e essa desgraçada comeu toda minha alface. Buraco eu vou fazer em você!
— Hááá dona... Ela é inocente, um animal...
— O animal são vocês com essas cabritas. Já bati. Ela apanhou muito, agora vai aprender, está presa.
— Ouvir a velha falar isso, doeu meu coração.
Fiquei quieto, suspirei, vou contar o resto junto com o Parício, pra conta uma só vez.
Parício estou chegando, graças a Deus ela soltou a Bita...
— Conta como foi. Conta como foi.
— Foi duro Tiziu, quem escaramuçou fui eu. Cheguei e fui dizendo:
— Dona, por favor, posso levar minha cabra?
Falei... Falei muito com ela, ai rapais, ela estourou. Ouvi cada palavrão e xingamento: A puta que te pariu...moleque besta, cachorro! Nessa ora desmanchei, num deu pra segurá, chorei com gosto. Soluçando, balbuciando mal conseguia falar. Nem parecia que era eu. Parício, eu gosto muito das cabras. Acho que o choro tocou seu sentimento de bruxa. Mas continuou xingando. Paricío ... caiu do céu um pensamento. Muita sorte, lembrei e falei: — Dona, a senhora esqueceu? Foi meu pai quem arrumou o serviço de coveiro pro seu falecido...
Ela fez silêncio, passou um pano na cara e demorando abriu uma porta mostrando a cabra.
— Quando vi a Cabana, ela olhava pro chão, triste num canto escuro. Quando me viu deu um chorado lamento. Gosto muito dela, também chorei, é a mãe e avó da maioria.
A velha da quinta ocê conhece. Pedi desculpas, implorei. Ela só falava: minha alface crespa, minha alface nova...
Ela é aquela rezadora sempre vestida de preto, preto também o lenço na cabeça A casa esta toda fumegada do fogão a lenha. Pode ser uma santa rezadora, mas o pano preto na cabeça, o nariz curvo, enrugada, boca chupada, uma verdadeira bruxa. É dessa aí que minha irmã sempre fala, tem medo.
Quando soltou a gente ela disse: Vou passar tempo tomando leite de cabra, viu menino? Riu que nem gralha com voz de taquara rachada. Nessa hora, assustei, passou o soluço. Até mexi no estilingue.
— Vamo embora daqui, - disse o Aparício. Até eu tô com medo!
— Entrando no portão de casa gritei: Manhe cheguei!
— Nossa filho, ocê demorou.
— O pasto tava bom mãi.
— Tá bem filho! Como a Cabana tá cheia! Hoje comeu bem, heim
— E como, mãe.
...PRECISO ME PREPARAR. AMANHÃ ELA NÃO VAI DAR LEITE...